9 de fevereiro de 2016

“Uma família não é uma democracia”

Javier Urra, o pedagogo espanhol que se especializou em crianças e adolescentes em conflito aberto com os pais, deslocou-se a Portugal para falar do seu novo livro, “O Pequeno Ditador cresceu”, uma atualização do bestseller escrito em 2007. Aqui ficam alguns conselhos para os progenitores



Javier Urra está habituado a casos bicudos. Décadas de experiência a lidar com jovens e adolescentes problemáticos e de cargos - foi o primeiro provedor de menores em Espanha, o primeiro presidente da Rede Europeia de Provedores de Menores, além de participar assiduamente nas reuniões da UNICEF e da Comissão Europeia - deram a este psicólogo um largo conhecimento sobre as relações entre pais e filhos, em especial quando se instala uma tirania por parte dos mais novos. Em 2007, escreveu um "bestseller", "O Pequeno Ditador", que vendeu 33 000 exemplares e vai já na 18ª edição. Este ano, lança uma "atualização" do livro, "O Pequeno Ditador Cresceu", sobre os meninos que são agora adolescentes e têm nas tecnologias novos aliados.
Quem lê o livro pode assustar-se, achar que aqueles casos são representativos do todo - mas Javier Urra tranquiliza os pais. Não há números certos de quantos filhos maltratam, psicológica ou fisicamente, os pais, e as denúncias de pais sobre filhos cresceram em Espanha - de 2300, em 2007, saltaram para 4700, em 2015. Mas a maioria dos filhos não tem de ser assim.
Em 2011, Urra abriu o Centro Recurra Ginso, a 70 km de Madrid, onde os casos mais complexos ficam internados durante um ano, submetendo-se a um programa de disciplina e terapia. Os pais trazem os filhos de carro, deixam-nos lá e, nos primeiros 15 dias, não há qualquer contacto entre ambos. No centro, não há telemóvel, internet, álcool nem tabaco. Há câmaras de vídeo nos quartos, para evitar acidentes, muita disciplina - dias que começam às 7h30 sem falta, que incluem 4 horas de aulas, desporto e muita terapia, individual e em grupo. Um ano parece imenso tempo, mas é o necessário para mudar hábitos, assegura Urra, e recuperar relações tóxicas entre pais e filhos, onde por vezes os maus-tratos psicológico já querem resvalar (ou resvalam mesmo) para o confronto físico.
Nesta "patologia do Amor", em que se quer amar mas não se sabe como fazê-lo, Javier Urra explica que há fatores-chave que se alteraram na sociedade de hoje. Houve uma perda geral de autoridade - de pais, professores... -, e os filhos tiranos 'beneficiam' disso. Sentindo que lhes é permitido mais, que há menos regras, e que os pais têm dificuldade em dizer-lhes que não, "medem forças" , e a manipulação e o poder das crianças aumenta. "Criou-se a ilusão de que uma família é uma democracia", alerta Urra - quando na verdade, é indispensável haver alguém a mandar. E não há que ter medo em dizer que não. O "não" é muito formador e indispensável para as crianças.
Apesar de tudo isto, o pedagogo considera que os pais não têm de entrar em pânico, e que nem todos vão ter um "pequeno ditador" em casa. Há é claro, que fazer por isso.

Aqui ficam dez conselhos essenciais do pedagogo para os pais:

1- Desfrutem dos vossos filhos. O tempo passa a correr
2- Deem-lhes segurança
3- Mantenham contacto com eles
4- Digam-lhes que os amam, e deixem-se amar
5- Mantenham contacto com a natureza, acampem
6- Pratiquem desporto
7- Sorriam, e riam-se de vocês mesmos
8- Relativizem os problemas
9- Sejam agradecidos
10- Ensinem as crianças a apreciar a beleza - de um quadro, de uma flor. Ensinem o gosto pelas coisas bonitas.

Guarda no bolso uma bofetada para o teu filho. Uma só”

JOSÉ CARLOS CARVALHO | EXPRESSO
O espanhol Javier Urra tem uma vida dedicada aos jovens problemáticos em conflito com os pais
Javier Urra, pedagogo e psicólogo que cuida de crianças problemáticas, escreveu um novo livro. Em Portugal, falou-nos do trabalho que desenvolve em Madrid com jovens em conflito com os pais. “O Pequeno Ditador Cresceu” é a obra que atualiza o 'bestseller' ”O Pequeno Ditador” (de 2007), que vai na 17ª edição.

Nenhum pai quer admitir que o filho lhe bate. Ou que o humilha e violenta psicologicamente. Por isso, o silêncio e a vergonha impedem de saber quais os números exatos que atingem a sociedade atual e minam a relação pais/filhos de forma intensa. Javier Urra está habituado a receber os casos de “fim de linha”, aqueles que chegam ao centro que dirige, a 70 km de Madrid, onde os pais os deixam durante um ano, depois de esgotadas todas as possibilidades.

No programa “Recurra Ginso”, em 75% dos casos, é possível resgatar adolescentes que estão na fronteira entre os abusos verbais e os físicos. Esta é a última ocupação do pedagogo, de 58 anos, que foi o primeiro provedor de menores em Espanha e o primeiro presidente da Rede Europeia de Provedores de Menores. E é por aqui que começamos.

Quantos casos de adolescentes em confronto aberto com os pais receberam desde a abertura do programa "Recurra Ginso", em Madrid, em 2011?

Por ano, temos uma média de 95 jovens na residência. Desde o início, tivemos connosco 370 jovens, que ficam durante um ano. Casos que vimos, internados e em ambulatório, foram cerca de mil - o que equivale a mil famílias.


Que quadros obrigam um jovem a ficar internado um ano num centro, longe da escola e do seu meio familiar?

Humilhações, insultos, manipulações, quase sempre à mãe, que é o elemento mais presente, que muitas vezes progridem para a violência física. É nesse limiar, em regra, que os jovens são internados. A violência ascendente (sobre os pais) não é uma violência de género, mas no caso de uma mãe agredida, o agressor está em casa, e não o podemos mandar sair. E um filho que bate numa mãe tem muitas possibilidades de vir a bater na mulher.

Onde anda o pai? 
A figura do pai é mais complicada. Antigamente, quando uma criança fazia uma asneira, a mãe dizia: "Vou dizer ao papá". Hoje, muitos pais não querem confrontar os filhos. Sentem vergonha que o filho tenha aquele tipo de atitudes. Por isso é que há tanto silêncio em torno desta questão. Consideram-na um problema de família. É o último tabu.

Qual a idade dos jovens que vos chegam ao centro?

Em média, 16 anos e meio. Mas os problemas constroem-se muito mais cedo. Há pais que não conseguem lidar com os seus filhos de quatro anos... Chamo-lhe a "patologia do amor". Pais e filhos são como ímanes que estão mal colocados, e portanto se repelem, ao invés de se atraírem. Querem gostar-se, mas não "conseguem". Há imensos pais médicos, professores, com um enorme sentimento de culpa. Houve uma perda imensa de autoridade, há uma crise enorme de autoridade. E criou-se esta ideia de que a família é uma democracia. Não é verdade. Como se criou a ideia de que dizer 'não' traumatiza as crianças. Educa-se muito no "eu".

Não há que ter medo de dizer 'não'?

Há coisas que têm de ser impostas. Não perguntamos às crianças se querem ser vacinadas. Fazemo-lo e pronto. Como também não lhes perguntamos se querem comer legumes. Damos-lhes. É sintoma de uma sociedade rica materialmente, cheia de filhos únicos, mas pobre espiritualmente. Por isso também há tantos jovens europeus que se deixam doutrinar pelos islamistas e pelo Daesh: porque não têm razões para viver, e dão-lhes uma razão para morrer... Dão-lhes uma causa. Em três, quatro semanas, são recrutados. São miúdos sem projeto de vida, sem assertividade, impermeáveis. Nada passa. Mas estes miúdos também sofrem.

Um ano é muito tempo. Quais as várias fases do programa? 

Os primeiros três meses servem para o que chamamos "autobiografia". Os pais trazem-nos de carro. No primeiro dia, digo-lhes sempre: "Não fujas hoje. Espera por amanhã. Em casa não estás bem. Fala com os outros miúdos aqui no centro". Nestes anos todos, fugiram três. O truque reside em fazê-los perceber que estamos a trabalhar em conjunto com os pais deles. Não há telemóveis no centro. Nos primeiros 15 dias, não há qualquer contacto com os pais. Não há álcool, não há tabaco, não há computador. Há análises periódicas, para perceber consumos. Há câmaras de vídeo nos quartos, para evitar acidentes. Passados três meses, começam as consultas com os pais. Aos fins de semana, veem os pais. Choram muito. Querem entender-se. Também fazemos muitos acampamentos na natureza.

Mas não é tempo a mais? 

Não. Os hábitos demoram muito a mudar.


Como é o quotidiano no centro, os horários? 

Às 7h30, acordam. Tomam duche, pequeno-almoço. Depois, têm 4 horas de aulas. Depois, desporto. Almoçam. Segue-se algum tempo livre. Depois, terapia de grupo. Muita. Somos todos muito simpáticos, otimistas, jovens. A equipa tem 102 pessoas, entre educadores, advogados, psicólogos, psiquiatras... Todos são escolhidos por mim. Temos um êxito de 75%. Fracassamos em casos de jovens com problemas psiquiátricos, miúdos com amigos mais velhos com problemas de drogas, e alguns pais complexos, que dão sinais dúbios, de maus tratos emocionais, do género: "Gosto de ti, mas não me tomes muito tempo.”

Havia um projeto para fazer um centro destes em Lisboa, certo? Em que pé está isso? 
Não está, porque o Ministério da Saúde português não quer entrar com parte do dinheiro. Em Espanha, a mensalidade do centro é de 4.100 euros, mas os pais só pagam 1.700. É o que custa ter psicólogos que lá ficam à noite, para o caso de haver um jovem com uma crise a essa hora. Aqui, o Estado não quis assumir essa quota-parte.

Qual é a percentagem de jovens problemáticos em Espanha, face ao total? 

Não sei. Não há números certos. Mas sabe-se que em 2007, foram feitas 2.300 denúncias na polícia, de pais relativamente aos seus filhos. E em 2014, foram 4.700. E falamos de denúncias, que é algo que muito poucos pais fazem. Este não é um problema inventado pelos meios de comunicação. Existe. Mas está muito escondido.

Os números pecam por defeito? 

Provavelmente. 28% das crianças em Espanha são adotadas - normalmente da Europa de Leste. Muitos acabam em hospitais e instituições, e têm sintomas de carência afetiva, falta de toque. E ao contrário do que seria expectável, tornam-se agressoras. Medem. Testam os adultos. A questão é: seremos nós, pais, capazes de educar todas as crianças?

O que devem fazer os pais para evitar futuros adolescentes problemáticos? 

A partir dos 7 anos, podem levar-se as crianças a ver meninos nos hospitais, conversando com eles, explicar-lhes que há meninos doentes que não vão sair do hospital. Pedir-lhes que escolham alguns dos seus brinquedos para dar. Ensinar-lhes a empatia.


Qual a sua posição sobre o castigo físico, a bofetada? 

Digo sempre aos pais para guardarem no bolso uma bofetada para os seus filhos. Uma só, não duas. Porque senão, onde pára a escalada? As sanções devem ser proporcionais e imediatas. E é preciso transformar as ameaças de castigo em castigos efetivos.


O que devem os pais querer para os seus filhos? 

A maior parte dos pais diz que quer que os filhos sejam felizes. Isso é um erro. É querer que a vida seja um "mundo Disney". Os pais devem querer que os filhos, no dia em que se despedirem da vida, considerem que valeu a pena, e que ajudaram a melhorar alguma coisa. Nada mais.

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